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A grande mentira do in dubio pro societate na primeira fase do júri


O procedimento especial do tribunal do júri é bifásico ou escalonado, com duas fases bem delimitadas, peculiares, iniciando-se a primeira com recebimento da denúncia ou da queixa, findando-se com a prolação da sentença de pronúncia, única das quatro possíveis decisões do juiz que remete o acusado à segunda fase. A primeira fase também é conhecida como judicium acusaciones ou juízo de acusação ou ainda sumário de culpa. A segunda fase tem início com a manifestação das partes pelo art. 422 do CPP, concretizando-se com a instalação da sessão, o plenário de júri, também chamado de judicium causae ou juízo da causa ou de mérito, findando-se com a prolação de sentença, condenatória ou absolutória, pelo juiz presidente.

A primeira fase do júri é muito semelhante ao procedimento ordinário ou padrão, entretanto, com seus aspectos próprios a partir das alegações finais orais ou memoriais, certo que aí os pedidos já se distinguem daqueles feitos no procedimento comum. Para que o juiz encaminhe o acusado diante do conselho de sentença, formado por sete jurados, é necessário que ele opte pela decisão denominada sentença de pronúncia, a qual nada mais é que uma sentença processual e de conteúdo declaratório, isto é, a decisão de pronúncia não é um mero despacho interlocutório misto, mas tem status de sentença, revendo assim o primeiro subscritor deste o entendimento errôneo que tinha de ser a pronúncia um despacho e não uma sentença, abroquelando-se na máxima de que somente os mortos e os tolos não voltam atrás!

Quais são os requisitos que o juiz deve ter à mão para eleger a pronúncia e não outra decisão? A resposta está bem clara no art. 413, caput, do CPP, quais sejam, convencer-se da existência da materialidade do fato e de indícios suficientes da autoria ou participação do acusado no crime a ele imputado, cuja fundamentação limitar-se-á tão somente a indica-los (existência da materialidade do fato e indícios suficientes de autoria ou de participação), jamais externando qualquer juízo de certeza, deixando de maneira subliminar um juízo assim de incerteza, dispensando somente aos jurados soberanamente por ratificar ou não o juízo provisório estabelecido na pronúncia, ou seja, caberá aos jurados condenar ou não o réu pela classificação temporariamente eleita pelo juiz na sentença de pronúncia.

Contudo, existe, digamos, uma “tradição” perniciosa no procedimento do júri e sintomaticamente adotada pelos juízes e promotores, no sentido de que toda e qualquer dúvida por ventura remanescente na primeira fase do júri, deve militar a favor da sociedade, ou seja, lançam mão do famigerado, malsinado, teratológico, vetusto, ultrapassado e mesmo inconstitucional brocardo in dubio pro societate, o qual valeria, quando muito, tão só para o recebimento da exordial acusatória. Só isso e nada mais. Perguntamo-nos às vezes no silêncio da noite quem conseguiu a façanha de inventar isso! Quem disse que manga com leite faz mal? Quem disse que a caixa preta do avião é preta? (É da cor laranja)!

Essas pérolas do direito são mesmo risíveis, cujo benefício é de quando em vez colocarmos o tico e o teco para funcionar! Ora, está solidificado no ordenamento jurídico pátrio, nomeadamente no procedimento criminal, seja ele comum ou especial, que toda e qualquer dúvida deve militar a favor do réu e não da sociedade. O predomínio nesse caso é do brocardo in dubio pro reo (e não hell!), o qual tem âncoras no princípio constitucional da presunção da inocência ou da não culpabilidade, contemplado no artigo 5º, LVII da Carta Magna.

Com pesar assim, vemos centenas, centenas, e mais centenas, de pronúncias serem proferidas, calcadas nesse falacioso brocardo latino, muito cômodo e pouco trabalhoso, certo que só devem ser remetidos ao plenário de júri aqueles réus que, caso estivessem sendo julgados pela vara criminal comum, pudessem ser condenados, ou seja, o juiz deve se limitar a dizer na pronúncia que se convenceu da materialidade do fato e de indícios suficientes de autoria ou de participação do réu em dado crime doloso contra a vida, sendo caso assim de enviá-lo a julgamento popular, mas jamais adotar a cômoda postura, de triste recordação para a humanidade, do governador Pôncio Pilatos, de candidamente lavar as mãos e enviar o acusado para ser julgado ou normalmente imolado no cruel altar do povo, uma vez que ai, diferentemente do que foi declarado pelo juiz e afirmado pelo acusador, persistirá também no mais das vezes o in dubio pro societate e não o propalado in dubio pro reo, brocardo assim que não raro é invocado em alegações finais e sentenças de pronúncia como estratégia e justificação para simplesmente encaminhar o réu ao plenário de júri, diante dos sete jurados, estes, juízes naturais e constitucionais da causa, como se o juiz togado não pudesse, já na primeira fase do júri, impronunciar, absolver ou desclassificar a conduta do réu, filtrando desse modo os casos que realmente careçam de apreciação pelo conselho de sentença, poupando a todos, especialmente os acusados, dessa verdadeira via crucis, uma vez que como diria o pranteado professor Piero Calamandrei, a tramitação do processo já é uma pena extra não só para o réu, mas também aos seus familiares e amigos.

Romualdo Sanches Calvo Filho

Advogado criminalista, professor de direito e processo penal e presidente da APDCrim, com mais de 30 anos de experiência em plenários de júri de todo o Brasil e e Gestor da Sanches Calvo Advogados

Rômulo Augusto Sanches Calvo

Advogado criminalista e pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Mackenzie.

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