O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E O ANACRONISMO DA SENTENÇA DE IMPRONÚNCIA
Sempre afirmamos que a lei 11.689/2008 que introduziu reforma pontual no procedimento especial do júri, perdeu a rica oportunidade de ter banido a sentença de impronúncia, prevista agora no art.414 do CPP, eis que manifestamente inconstitucional, certo violar os postulados da presunção de inocência ou da não culpabilidade, bem como o da igualdade processual, tornando-se assim um verdadeiro corpo estranho, um verdadeiro patinho feio nesse procedimento bifásico ou escalonado do tribunal do júri.
Com efeito, ao final do encerramento da instrução probatória da primeira fase do júri, também conhecido por sumário de culpa ou judicium acusaciones, temos que o juiz poderá valer-se de quatro possíveis decisões, a saber: pronuncia, impronuncia, absolvição sumária e desclassificação. A primeira é a única que remete o acusado ao plenário de julgamento diante dos sete jurados, bastando que o juiz se convença da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação do réu no crime doloso contra a vida, com probabilidade de admissão dessa pretensão punitiva pelo conselho de sentença, uma vez que do contrário, deve o magistrado optar pela impronuncia, absolvição sumaria ou desclassificação. Estas três decisões, põe termo ao procedimento bifásico ou escalonado do júri, uma vez que o processo não seguira mais adiante, especialmente para o plenário de júri.
Centremo-nos no problema objeto do presente trabalho. A sentença de impronuncia pode ser prolatada pelo juiz quando faltar um ou mais requisitos autorizadores para lavratura da sentença de pronuncia, ou seja, quando o juiz não se convencer da materialidade do fato ou de indícios suficientes de autoria ou de participação no crime doloso contra a vida, irá optar, conforme mandamento legal, pela sentença de impronuncia, a qual não analisa o mérito da causa e tampouco remete o acusado ao plenário do júri para ver ai o mérito da causa apreciado pelos sete juízes populares, os jurados, vale dizer, a sentença de impronuncia é um verdadeiro non liquet, uma sentença portanto terminativa de mérito, não atando ou desatando o nó provocado pela instauração da ação penal!
De fato, o Estado acusador é quem deve ter a incumbência de demonstrar em juízo aquilo que se comprometeu a provar no limiar da ação penal, trazendo ao juiz elementos sérios, fidedignos, idôneos, no sentido de lhe oferecer grande probabilidade de materialidade delitiva e indícios suficientes de autoria ou de participação em crime doloso contra a vida, com vistas a encaminhar o réu perante o conselho de sentença e ter ai a confirmação ou não daquela pretensão acusatória. Caso a acusação não tenha sucesso no seu desiderato, isto é, fique pelo caminho e não consiga chegar até o final com sua pretensão desenhada na inicial acusatória, será inexoravelmente caso de se proferir uma decisão de mérito e não simplesmente valer-se de expediente processual caquético, subnutrido, ilegal e acima de tudo inconstitucional da denominada impronuncia, a qual é um nada processual, um indisfarçável atestado de que o acusado não só é inocente, mas também de que o Estado acusador não se desincumbiu da obrigação legal e constitucional de provar o que deveria ter provado e não fez, por negligencia, açodamento, falta simples de provas, deficiência da estrutura estatal etc.
Assim, se a acusação não provar por A mais B aquilo que se propôs provar em juízo, ficando tudo apenas escrito e não demonstrado na exordial acusatória, competirá ao Estado juiz tão somente efetuar um tiro de misericórdia no arremedo de pretensão punitiva, devolvendo o acusado à sociedade, não com apecha de impronunciado, mas de absolvido, livrando-o com isso ao menos de ser discriminado diante dessa mesma sociedade, parentela e amigos, afinal, ou a mulher está gravida ou não está gravida, não sendo possível um meio termo, como dizia o trecho de uma antiga e conhecida música popular que “mamãe, estou ligeiramente grávida!”. Ou se pronuncia o acusado para leva-lo às barras do plenário de júri ou então seja ele sumariamente absolvido na primeira fase, e tirando- o do dilema de se saber se é culpado ou inocente!
Agregue-se a tudo isso a lamentável situação de que enquanto o crime doloso contra a vida não tiver extinta a sua punibilidade pela prescrição (art.414 par.unico do CPP), o acusado não terá paz, sossego, eis que além da famigerada impronuncia, ele terá sobre si uma espada invisível de Dâmocles, uma espécie de coleira que o Estado juiz lhe coloca até que ocorra, em regra, a prescrição vintenária!
Desse modo, se o acusado “a” é levado a júri pela pratica de homicídio qualificada, sucedendo seja ele ao final da primeira fase impronunciado, teremos que esse pobre diabo não terá nem o status de condenado e tampouco absolvido, tendo de quebra que aguardar vinte aninhos para se livrar da opressão estatal, a qual cômoda, sínica e candidamente não conseguiu provar seu tempo e dentro do due process of low as condições necessárias para que pudesse esse infeliz réu ser levado perante conselho de sentença! Tivesse esse mesmo réu do nosso exemplo sido processado por um crime ainda mais hediondo e com pena em abstrato ainda maior, como o de extorsão mediante sequestro com resultado morte, perante uma das varas criminais singulares, rigorosamente com as mesmas provas utilizadas no júri, em termos de quantidade e qualidade, teríamos que esse acusado seria então absolvido, com pedestal no art.386,VII do CPP, sentença que, após transitar, faria a coisa julgada formal e material, isto é, não mais poderia ser discutida, mantendo o acusado seu status de presumidamente inocente!
Destarte, temos que a sentença de impronuncia hoje é uma decisão francamente teratológica, absurda, inconstitucional, ofendendo os princípios da presunção da inocência e da igualdade processual e constitucional, uma vez que o júri é um dos direitos individuais do cidadão, o direito de ser julgado pelos seus pares, uma verdadeira clausula pétrea, não podendo assim ser menos garantista que o procedimento penal comum, o qual, repise-se, à mingua de provas para sustentar uma condenação, absolve o cidadão, diferentemente do procedimento especial do júri que inacreditavelmente, impronuncia-o. Melhor seria então que o réu do exemplo antes mencionado fosse julgado pelo juiz da vara criminal comum! “Mamãe, estou ligeiramente gravida!”
Romualdo Saches Calvo Filho
Advogado criminalista, professor de direito e processo penal e presidente da APDCrim e Gestor da Sanches Calvo Advogados